O leão de Nemeia

O primeiro dos 12 trabalhos que Héracles realizou a mando de Euristeu foi matar o leão de Nemeia (gr. λέων Νεμέου).

Sumário

• O mito e suas fontes
• Variantes
• Influências e recepção
• Bibliografia

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Esse leão era de tamanho descomunal e aterrorizava os arredores dos montes Treto e Apesas, em Nemeia, na Argólida, atacando rebanhos e pessoas. Era filho de Ortro e Quimera — ou, talvez, de Equidna^[1] —, tinha a proteção de Hera, que almejava a destruição de Héracles e estabeleceu o leão em Nemeia para que ele, no futuro, destruisse o herói. Paradoxalmente, a região de Argos era dedicada à deusa e protegida por ela.

Héracles não sabia, mas a pele do leão era impenetrável. Armado de arco e flecha, espada e pesadíssima clava, dirigiu-se à área onde vivia o monstruoso leão e, ao encontrá-lo, atingiu-o com suas flechas, facilmente repelidas pela invulnerável pele do animal. Aproximou-se e tentou matar o monstro com a espada, também sem sucesso, e então aplicou-lhe violento golpe de clava no crânio, que tonteou o animal somente durante alguns segundos. O herói se deu conta, finalmente, de que nada era capaz de perfurar a pele do monstro e, então, envolveu a fera com os braços e tanto apertou que o leão morreu asfixiado.

Morto o leão, Héracles retirou-lhe a pele cortando-a com as próprias garras e revestiu-se com a pele invulnerável, daí em diante uma de suas marcas registradas^[2].

Héracles domina o leão

De acordo com Calímaco, Héracles recebeu a hospitalidade de um camponês, Molorco, antes de encontrar o leão. Ele ia preparar-lhe seu único carneiro, mas Héracles propôs que ambos sacrificassem o animal a Zeus, se o herói voltasse vitorioso em 30 dias; mas, se não retornasse no prazo, Molorco ofereceria um sacrifício a ele, Héracles^[3]. E Zeus, naturalmente, recebeu o seu carneiro... Nessa ocasião, Héracles teria instituído os Jogos Nemeus em honra do pai.

[Apolodoro] conta que Héracles levou a carcaça do leão a Micenas e Euristeu, assustado, ordenou que daí em diante Héracles deveria deixar os espólios de suas façanhas na entrada da cidadela e que lidaria com ele através de seu arauto, Copreu.

De acordo com outros acréscimos tardios ao mito arcaico, Zeus colocou o leão nos céus, formando uma das constelações do zodíaco, a terceira em tamanho: Leo, ou Constelação do Leão^[4].

Influências e recepção

Héracles usa a espada contra o leão

A luta entre deuses, homens e leões é tema antigo, oriundo talvez da antiga Mesopotâmia, notadamente de histórias relacionadas a Enkidu e Gilgámesh e, ainda, ao Sansão bíblico. Em uma tabuinha de -1300/-1200, Gilgámesh usou uma pele de leão para expressar sua tristeza^[5]. Bes, antigo e popular deus egípcio, era imaginado com traços leoninos e às vezes representado com uma pele de leão ou leopardo após o século -XVI. Há também numerosas representações de Melcarte, deus fenício conhecido pelo menos desde o século -X, vestindo uma pele de leão.

Aparentemente, o mito grego estava bem estabelecido da segunda metade do século -VII em diante; a Teogonia hesiódica e cenas de vasos de figuras negras^[6] estão entre os mais antigos testemunhos. Imagens de Héracles vestindo a pele do leão, i.e, posteriores ao 1º trabalho, remontam mais ou menos a -600.

O mito inspirou um drama satírico de Ésquilo, Leão (F 123); um poema de [Teócrito], o Idílio 25; um epigrama de “Arquias” (Antologia Palatina 16.94); um soneto de José-Maria de Heredia (1893); e um conto policial de Agatha Christie (1939). Heredia registrou, em particular, a aterrorizante imagem de Héracles vestido com a pele do leão (Nemeia, 12-4):

Na arte, o 1º trabalho é justamente um dos temas mais representados em vasos, particularmente a partir do século -VI: há mais de 800 ocorrências documentadas, e.g. Londres 1856,1202.1 (-550/-540); Louvre CA 1340 (c. -540); [Ilum. 1201] supra; e [Ilum. 0085]. Atena e Iolau algumas vezes assistem à luta. Nas antigas métopas e relevos que representam os 12 trabalhos, e.g. as do templo de Zeus em Olímpia (-470/457), ele está sempre presente.

Durante o Período Greco-Romano, o intrincado nó que prendia a pele do leão em torno do pescoço do herói em várias cenas de vasos (e.g. [Ilum. 0921]) inspirou o “nó de Héracles” (gr. Ἡρακλεωτικὼν ἅμμα, lat. nodus Herculeus), presente em amuletos e obras de arte. Talvez por influência da força de Héracles e da invulnerabilidade da pele do leão, acreditava-se que tinha propriedades apotropaicas^[7]. No início do século XX, foi adotado pelos escoteiros.

P.Oxy. 2331: Héracles e o leão

Cenas de vasos, relevos, esculturas, moedas, mosaicos e outras manifestações artísticas representaram Héracles e o leão de Nemeia ininterruptamente, do Período Arcaico até nossos dias. O primeiro encontro entre o texto do mito e uma imagem representativa se deu na primeira metade do século III, em um poema ilustrado parcialmente conservado pelo P.Oxy 2331^[8].

Da Idade Média em diante, vários artistas recorreram ao tema da luta entre o herói e o leão, e.g. Raoul Lefèvre (iluminura, 1200-1450); Jean d'Ypres (tapeçaria, c. 1500); Robinet Testard (iluminura, 1496-1500); Baldassare Peruzzi (afresco, c. 1511); Galeazzo Mondella (placa de bronze, c. 1500-25); Michelangelo (desenho, sæc. XVI); Francisco de Zurbarán (pintura, 1634); Peter Paul Rubens (pintura, c. 1615; gravura, c. 1620); Conrad Nicolaus Boy (grupo escultório, 1791); Eugène Delacroix (pintura, 1852); Max Klein (bronze, 1879).

Em fontes recentes e não acadêmicas, uma técnica de estrangulamento controlado utilizada para subjugar adversários em lutas corpo a corpo, denominada Hadaka Jime no jiu-jitsu e “mata-leão” por lutadores brasileiros, têm tido origem atribuída à luta entre Héracles e o leão de Nemeia.

Bibliografia

Gibbons 1975, 35-74; Felten 1990; Gantz 1993, 383-4; Stafford 2012, 30-33; Fowler 2013, 274-6; March 2021.