No terceiro de seus 12 trabalhos, Héracles foi encarregado de capturar a rápida
corça cerineia (gr. Κερυνῖτις
ἔλαφος) e levá-la a Euristeu.
Sumário
A corça era um animal associado a Ártemis que vivia nos arredores do Monte Cerineia ou do Rio Cerynites (atual Kerynitis),
perto da antiga Heleia, no extremo norte do Peloponeso, próximo ao Golfo de Corinto[1].
Tinha chifres de ouro
e pés de bronze, era extremamente veloz, nunca se cansava e pertencia à deusa Ártemis,
a quem fora consagrada.
Héracles precisava capturá-la viva e perseguiu-a durante um ano;
segundo Píndaro, perseguiu-a até o país dos Hiperbóreos, isto é, até os confins do
mundo conhecido.
O herói conseguiu finalmente alcançá-la quando ela
atravessava um rio, na Arcádia. Algumas versões da lenda contam que ele retardou a
corça ferindo-a levemente com uma flecha, o que não é muito verossímil: o
veneno da Hidra não falhava nunca...
No retorno a Micenas encontrou-se com Ártemis e Apolo, seus meio-irmãos, ambos bastante
irritados com a captura da corça. Héracles mostrou-lhes que o animal
estava vivo e bem, e ponderou que tinha agido por ordem de Euristeu e, indiretamente,
de Hera, esposa de Zeus e rainha dos deuses. Com isso, desconversaram e deixaram-no ir em paz.
Atena, Héracles, a corça e Ártemis
Algumas outras localidades associadas à presença da corça foram também mencionadas na Antiguidade: Oinóē, Argólida (Eurípides);
Monte Artemísio, Arcádia ([Apolodoro]); Maínalos e Parrásia, Arcádia (Sêneca); Delfos? (Bolonha 303).
Arcaicas e clássicas: Pisandro F 3; Teseida F 2; Píndaro (Olímpicas 3.45-57); Ferécides F 71;
Eurípides, Héracles 375-9 e Temenidas F 740; Calímaco, hino a
Ártemis 98-109.
Posteriores: Diodoro Sículo 4.13.1; Virgílio, Eneida 6.801-2; Marcial, Epigramas 9.101.7; [Apolodoro] 2.5.3;
[Higino], Fábulas 30.5; Eliano, Histórias dos animais 7.39; Sêneca, Hércules em Fúria 222-4, Agamêmnon
831 e Hércules no Eta 1238-9; Σ Píndaro, Olímpicas 3.53a-e; Quinto de Esmirna, 6.225-6.
Documentos iconográficos (seleção): Londres 1898,1118.1; Filadélfia 75-35-1; Cerveteri 7968; Oxford 1934.333; Würzburg L199;
Berlim F1859; Munique J355; Londres 1843,1103.80; Louvre G 263 e F 272; Bolonha 303; e métopas em Olímpia, Delfos e Atenas
(no templo de Hefesto).
Influências e recepção
Corças com chifres não existem[2], mas são, indubitavelmente, animais fantásticos que participam de vários
mitos relacionados com Ártemis[3] e são consagrados a ela. Note-se, porém, que a
existência de corças chifrudas não é de todo impossível: Ridgeway[4] observou que o único cervídeo cuja
fêmea tem chifres é a rena, nativa do extremo norte da Europa e da Ásia, mas que já viveu mais ao sul, em áreas conhecidas dos gregos
dos Períodos Arcaico e Clássico. Talvez o mito ilustre um encontro dos gregos com um desses animais ao norte de seu território, e o fato de
Píndaro ter situado o mito nas frias regiões ao norte da Grécia não parece uma coincidência.
Pschmadt[5] aventou a hipótese de o mito ser uma importação do Oriente Médio semita e que os chifres da
corça representarim a lua; não há porém, bases suficientes para levá-la em consideração.
Burkert[6] imaginou que as corças não têm chifres devido ao fato de Héracles ter quebrado os
chifres da corça cerineia, o que me parece uma extrapolação um tanto exagerada.
Héracles e a corça
Há poucas referências literárias antigas sobre o terceiro trabalho, de pequena extensão e mencionadas sempre em conjunto com outras
façanhas de Héracles: Eurípides, Calímaco, Sêneca, Virgílio, Marcial e Quinto de Esmirna (ver Fontes antigas, supra). Em
obras modernas, a corça só é mencionada juntamente com as outras aventuras do herói; exceção é um conto policial de Agatha Christie
(A corça da Arcádia, 1940).
As representações artísticas, comparadas com as outras façanhas de Héracles, são relativamente poucas; predominam cenas de vasos
arcaicos de figuras negras nas quais o herói apreende a corça, isoladamente, ou que representam o momento em que Apolo e Ártemis o confrontam.
As cenas que mostram Apolo tentando tirar a corça de Héracles foram nitidamente inspiradas pelo episódio da disputa entre o herói e Apolo
pela trípode.
Entre os etruscos, a popularidade do mito se reflete na sua representação em terracota pintada no teto do templo de Apolo em Veios, datada
de -515/-490. A pose de Héracles imobilizando a corça com o joelho, vista em vasos (e.g. Louvre G 263) e na métopa do Tesouro
dos Atenienses ([Ilum. 0609]), se repete em um grupo escultório de Lisipo (sæc. -IV), conhecido através de várias
cópias romanas. Esse esquema iconográfico, o mais comum em relevos, bronzes e mosaicos pós-clássicos, influenciou diretamente as
representações do deus Mitra dominando um touro durante o Período greco-romano.
Dentre as poucas obras de arte modernas, cito Lucas Cranach (pintura, 1537-53), Heinrich Aldegrever (gravura, 1550) e Anatoly Popov
(bronze, 2013).
Bibliografia
Gibbons 1975, 148-68; Felten 1990; Gantz 1993, 386-89; Stafford 2012, 35-6;
Fowler 2013, 277-8; Aston 2021.