Eurípides / Ifigênia em Áulis

Ἰφιγένεια ἡ ἐν Αὐλίδι Iphigenia Aulidensis E. IA -405

Ifigênia em Áulis (gr. Ἰφιγένεια ἡ ἐν Αὐλίδι) é, provavelmente, a última tragédia escrita por Eurípides. O drama tem 1509 versos.

Sumário

A tragédia foi representada pela primeira vez em -405 no concurso trágico das Dionísias Urbanas de Atenas e era parte da trilogia trágica que recebeu a primeira colocação. Ifigênia em Áulis foi a primeira a ser apresentada; as tragédias que a acompanharam eram Bacantes, que conhecemos quase na íntegra, e Alcmeon em Corinto, da qual temos apenas alguns fragmentos. Nada sabemos a respeito do drama satírico apresentado após as tragédias.

Eurípides havia morrido alguns meses antes do concurso de -405 e Eurípides, “o Jovem”, filho (ou sobrinho) do poeta[1], produziu e encenou a trilogia. Acredita-se ainda que ele compôs alguns trechos da Ifigênia em Áulis, que o pai / tio deixara inacabada[99].

Ifigênia em Áulis é uma das tragédias com a maior quantidade de interpolações que chegaram aos nossos dias. Muitos eruditos defendem, no entanto, que o texto disponível, embora alterado ao longo dos séculos em várias cenas, segue o sentido geral do plano original de Eurípides para a tragédia e aceitam todos os versos da tragédia, inclusive o final.

Há evidências, no entanto, de que a tragédia termina no verso 1509[99], pois os últimos versos dos mmss. transmitidos pelas fontes antigas, 1510-1629, certamente não são de Eurípides. Esse final apócrifo foi acrescentado, em parte, no século -IV e, em parte, durante o Período Bizantino[99] .

Temas principais da tragédia: guerra e paz; liderança e política; moralidade versus necessidade; sacrifícios humanos; a natureza do casamento; o papel de maridos, esposas e filhos; falsidades e enganos, amizade, romance (incipiente), pan-helenismo.

Personagens do drama

miniatura Ifigênia, Clitemnestra e Agamêmnon

Agamêmnon, comandante da armada grega, é rei de Micenas (Argos), marido de Clitemnestra e pai de Ifigênia; o Velho é um antigo servidor de Agamêmnon e Clitemnestra; o Coro é formado por jovens mulheres casadas de Cálcis; Menelau, rei de Esparta, é irmão de Agamêmnon e tio de Ifigênia; Clitemnestra, esposa de Agamêmnon, é mãe de Ifigênia; Orestes é filho de Agamêmnon e Clitemnestra, irmão de Ifigênia; Aquiles,o mais poderoso dos guerreiros gregos, é o líder dos mirmidões.

O Mensageiro é um dos servos da casa de Agamêmnon. Figurantes mudos, de ambos os sexos, representam servos e servas de Agamêmnon e Clitemnestra, e alguns mirmidões.

Argumento

A tragédia se baseia no mito do sacrifício de Ifigênia, um dos episódios do Ciclo Troiano.

Agamêmnon convoca o Velho e revela que Ártemis impede os ventos de soprarem para que o exército grego não embarque. Um oráculo havia ordenado que sacrificasse sua filha mais velha, Ifigênia, para aplacar a deusa, e assim ele avisara Clitemnestra para enviar a filha até Áulis sob o falso pretexto de casá-la com o herói Aquiles. Arrependido, ordena que o Velho leve a Argos uma mensagem com ordens contrárias.

Menelau intercepta o Velho e lê a mensagem; os dois irmãos discutem e ofendem-se mutuamente. Um mensageiro comunica que Clitemnestra, Ifigência e Orestes estavam chegando; Agamêmnon lamenta-se e Menelau mostra simpatia pelas atribulações do irmão. Agamêmnon, no entanto, considera a morte de sua filha inevitável devido às pressões do exército acampado.

miniaturaO sacrifício de Ifigênia

Agamêmnon recebe Clitemnestra, Ifigênia e Orestes e procura enganar a esposa e a filha. Descreve a genealogia e os méritos de Aquiles e pede, sem sucesso, que a esposa retorne a Argos. Aquiles e Clitemnestra descobrem, então, que não são futuro genro e futura sogra; o Velho revela o que está realmente acontecendo. Clitemnestra implora a ajuda de Aquiles que, furioso com o uso indevido de seu nome, promete socorrê-la.

Clitemnestra e Ifigênia confrontam Agamêmnon e suas mentiras. Depois que Ifigênia tenta demover o pai, sem sucesso, Aquiles retorna e revela que o exército está incontrolável e até seus mirmidões voltaram-se contra ele. Prepara-se para enfrentar todos quando Ifigênia intervém, se oferece voluntariamente para o sacrifício e se dirige corajosamente para o altar.

Mise en scène

A cena se passa no acampamento das forças gregas estacionadas em Áulis, cidade da Beócia que faz frente à pólis de Cálcis, situada na grande ilha da Eubeia, na época da Guerra de Troia.

Provavelmente o protagonista representou Agamêmenon e Aquiles; o deuteragonista, Menelau e Clitemnestra; o tritagonista, o Velho, Ifigênia e o mensageiro.

Esta é uma das poucas peças em que Eurípides não recorreu ao deus ex machina: Ártemis, principal personagem divino da tragédia, é apenas mencionada[99].

Estrutura dramática

Para o vocabulário utilizado no estudo da estrutura dramática, ver sinopse Estrutura básica das tragédias.

Prólogo 1-163: diálogo anapéstico entre Agamêmnon e o Velho (1-48), monólogo de Agamêmnon em trímetros iâmbicos (49-114) e continuação do diálogo anapéstico (115-63). Há vários trechos cantados.

Párodo 77-135 em duas partes. Na primeira (164-230), descrição dos heróis gregos no acampamento (estrofe, 164-84; antístrofe, 185-205; epodo, 206-30); na segunda (231-302), o catálogo das naus (estrofe, 231-41; antístrofe, 242-52; estrofe, 253-64; antístrofe, 265-76). Segue-se uma passagem (277-302) de estrutura métrica controvertida.

1º Episódio 303-542. Predomina o trímetro iâmbico, com trechos em tetrâmetros trocaicos: confronto entre Agamêmnon e Menelau (303-414), intervenção do mensageiro (414-41), Agamêmnon e Menelau se reconciliam (441-542).

1º Estásimo 543-89: estrofe, 543-57; antístrofe, 558-72; epodo, 573-89.

2º Episódio 590-750, em trímetros iâmbicos e alguns em dímetros anapésticos. O Coro e Agamêmnon recepcionam Clitemnestra, Ifigênia e Orestes (590-639); diálogo entre Ifigênia e Agamêmnon (640-85); diálogo entre Clitemnestra e Agamêmnon (685-741); solilóquio de Agamêmnon (742-50).

2º Estásimo 751-800: estrofe, 751-61; antístrofe, 762-72; epodo, 773-800.

3º Episódio 801-1035. Trímetros iâmbicos, seguidos de longo trecho em tetrâmetros trocaicos: o encontro entre Aquiles e Clitemnestra (801-54), intervenção reveladora do Velho (855-99), bem sucedida súplica de Clitemnestra junto a Aquiles (900-1035).

3º Estásimo 1036-97: estrofe, 1036-57; antístrofe, 1058-79 epodo, 1080-97.

Clitemnestra, <a href='/arquivo.asp?num=0066'>Agamêmnon</a>, <a href='/arquivo.asp?num=0867'>Ifigênia</a>, o bebê Orestes
Fig. 0298. Clitemnestra, Agamêmnon, Ifigênia e o bebê Orestes (vv. 1211-52), c. -200/-150.

4º Episódio 1098-1275, em trímetros iâmbicos. Clitemnestra confronta Agamêmnon e suas mentiras (1098-145); Clitemnestra e Ifigênia imploram, mas Agamêmnon declara-se incapaz de salvar a própria filha (1146-275).

Monodia de Ifigênia 1276-1335, ao invés de um estásimo. Em anapestos recitativos (1277-82), seguidos de versos iambo-trocaicos (1283-335) de grande complexidade: breve diálogo entre Clitemnestra e a filha (1277-92), seguido do lamento lírico de Ifigênia (1283-335).

Êxodo 1336-1509, em tetrâmetros trocaicos e trímetros iâmbicos: breve intervenção coral (1336-7); Aquiles conta a Clitemnestra que falhou (1338-68); depois, o célebre monólogo de Ifigênia, que marca sua reviravolta (1368-401); diálogos de despedida (Aquiles, 1404-32; Clitemnestra 1433-66); no final, Ifigênia dialoga com o Coro (1467-509) enquanto sai de cena, rumo ao sacrifício. Note-se que os vv. 1475-1509, em metro iâmbico-trocaico, marcam um dueto entre Ifigênia e o Coro.

Manuscritos, edições e traduções

As fontes mais importantes do texto grego são os mmss. Laurentianus 32.2 (c. 1315), da Biblioteca Laurenciana de Florença (L), a fonte mais importante da família de “dramas alfabéticos”, e o Palatinus Vaticanus gr. 287 (c. 1320), da Biblioteca do Vaticano (P). Há três pequenos fragmentos de papiro: P.Leiden 510, -300/-250; P.Köln 67, sæc. II; e P.Oxy. 3719, sæc. III.

Notações musicais referentes a uma pequena parte de um dos cantos corais foram recuperadas a partir do P.Leiden 510. O autor deve ser um compositor que criou a música para uma das reapresentações da tragédia; veja uma reconstrução moderna de trecho musical.

A editio princeps é a Aldina, de 1503. Principais edições modernas da tragédia isolada, com comentários:

  • François Jouan (Paris, 1983 e 21989);
  • Hans Günther (Leipzig, 1988);
  • Walter Stockert (Viena, 1992);
  • Calderón Dorda (Madri, 2002)
  • Christopher Collard & James Morwood (Liverpool, 2017);
  • Valeria Andò (Veneza, 2021).

Passagens selecionadas

Em 1506, Erasmo de Rotterdam traduziu a tragédia para o latim[99], com abundantes paráfrases. As primeiras traduções para o português, também com numerosas paráfrases, foram a de Cândido Lusitano (1719/1773) e a de Manuel de Figueiredo (1805)[99]. Seguiram-nas as de

  • Carlos A. Pais de Almeida (Lisboa, 1974, 21998);
  • M. da Eucaristia Daniellou (Rio de Janeiro, 1980);
  • Mário G. Kury (Rio de Janeiro, 1993);
  • Bruno Gripp (Dois Irmãos, 2023);
  • Wilson A. Ribeiro Jr. (S. Paulo, 2024)
Ver também traduções gerais de Eurípides

Minha tradução do texto da Ifigênia foi completada por ocasião da Dissertação de Mestrado (Ribeiro Jr. 2006), revisada e finalmente publicada com introdução, comentários verso a verso e notas em 2024 pela Editora Madamu.

Influências e recepção

Ésquilo e Sófocles apresentaram, antes de Eurípides, tragédias intituladas Ifigênia e o próprio Eurípides destacou, em algumas de suas tragédias mais antigas (particularmente Electra e Ifigênia entre os tauros), elementos que utilizaria posteriormente na Ifigênia em Áulis. Há evidências de que duas outras Ifigênias em Áulis foram escritas, uma nos séculos -III/-II e outra, no século II, e o poeta romano Ênio compôs, nos séculos -III/-II, uma Ifigênia calcada na tragédia de Eurípides.

Entre os séculos -IV e -II, ela inspirou trechos da tragédia Reso e paródias em comédias de Êubulo, de Mácon e, talvez, de Menandro; influenciou alguns versos do poema Alexandra, do Pseudo-Lícofron, e de um poema de Cercidas; o filósofo Aristóteles criticou a reviravolta de Ifigênia[99] e o filósofo Crisipo citou alguns versos da IA; Plauto inspirou-se no prólogo para o início da comédia Psêudolo; e mais tarde, no século I, o poeta trágico Sêneca recorreu a um dos temas da IA em sua Polixena.

Reencenações por último

No século -III, pelo menos, trechos da tragédia eram cantados em apresentações ou competições musicais (cf. P.Leiden 510). JUNTO COM REENCENAÇOES?

Bibliografia

England 1891; Jouan 21989; Aretz 1999; Stockert 1992; Kovacs 2002; Michelakis 2006; Collard & Morwood 2017; Andò 2021; Ribeiro Jr. 2010 e 2024.

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