Eurípides / Hécuba

Ἑκάβη Hecuba E. Hec c. -424
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Uma das mais impactantes tragédias antibélicas[1] de Eurípides, com 1295 versos.

Sumário

A datação da Hécuba (gr. Ἑκάβη) não é totalmente segura; estima-se que a primeira representação ocorreu nos primeiros anos da Guerra do Peloponeso, por volta de -424.

Nada sabemos da premiação obtida e dos outros dramas apresentados pelo poeta no concurso dramático.

Hécuba, assim como Troianas, se passa logo depois do final da Guerra de Troia e coloca diante da audiência alguns dos aspectos mais negativos das guerras. É, também, uma tragédia de vingança dos fracos contra os mais poderosos, a mais antiga das “tragédias de vingança”[99] da literatura ocidental.

De acordo com Collard, “uma tragédia de lealdades” poderia servir de subtítulo a ela[99]. Outros temas importantes: princípios morais; sacrifício humano voluntário; vencedores e vencidos; amizade, hospitalidade, favores e reciprocidade; enganos; código de conduta aristocrática; justiça e lei taliônica (lex talionis).

Personagens do drama

miniatura Hécuba e Polixena

O Coro é constituído de mulheres troianas escravizadas pelos gregos.

Polidoro é o fantasma do falecido filho de Hécuba, ex-rainha de Troia, viúva de Príamo; Polixena é filha de Hécuba e de Príamo; Odisseu, um dos líderes gregos, é rei de Ítaca; Agamêmnon, rei de Argos, é o comandante dos gregos e Taltíbio, seu arauto. Polimestor, rei trácio, é um antigo aliado de Príamo. A Serva, que já teve Hécuba por mestra, agora é sua companheira de escravidão.

Personagens mudos: escrava, soldados gregos e duas crianças, filhos de Polimestor.

Argumento

O enredo se baseia em episódio do Ciclo troiano, situado logo após a destruição de Troia pelos gregos. Ele envolve, simultaneamente, os mitos de Aquiles, de Hécuba e de dois de seus filhos, Polixena e Polidoro.

miniatura A descoberta do corpo de Polidoro

Logo após a derrota dos troianos, os navios gregos chegam à Trácia. No acampamento, o fantasma de Polidoro diz ter sido assassinado por Polimestor após a queda da cidadela e que os gregos planejam sacrificar Polixena no túmulo de Aquiles devido à calmaria que impede a saída dos navios.

Hécuba, angustiada e amparada pelas outras cativas, lamenta a perda do marido e dos filhos e chama Polixena, a quem revela seu iminente sacrifício. Odisseu vem buscar a jovem e Hécuba tenta convencê-lo, invocando antigos favores a ele prestados, a levá-la no lugar da filha.

A rainha reúne forças e pede a Agamêmnon, comandante dos gregos, uma oportunidade para castigar Polimestor. Então, com a ajuda das outras cativas troianas, cega o rei trácio e mata seus dois filhos.

miniatura o julgamento de Hécuba

 

Mise en scène

A cena se passa em um acampamento grego na Quersoneso trácia (península de Gallipoli); vê-se a entrada da tenda de Agamêmnon.

O protagonista fazia o papel de Hécuba; o deuteragonista, de Polidoro, de Polixena, da Serva e de Polimestor; o tritagonista, de Odisseu, de Taltíbio e de Agamêmnon. Há, no entanto, outras possibilidades para a distribuição de papéis entre o deuteragonista e o tritagonista[1].

Estrutura dramática

Para o vocabulário utilizado no estudo da estrutura dramática, ver sinopse Estrutura básica das tragédias.

A tragédia é um “díptico” e pode ser dividida em duas partes frouxamente interligadas: a primeira refere-se ao sacrifício de Polixena (1-657); a segunda, à morte de Polidoro e à vingança de Hécuba (658-1295). A presença de Hécuba e seu indizível sofrimento conecta, no entanto, essas duas partes.

Prólogo 1-97: monólogo do fantasma de Polidoro (1-58) em trímetros iâmbicos, seguido por uma declamação anapéstica (59-67) e uma monodia de Hécuba em anapestos cantados, intercalados por hexâmetros dactílicos (68-97).

Párodo 98-153: sem estrofes, em anapestos recitativos (não líricos); similar a um relato de mensageiro.

1º Episódio 154-442: dividido em duas partes. Na primeira (154-215), temos um dueto lírico entre Hécuba e Polixena, com um lamento de Polixena por Hécuba em 197-210; predominam anapestos líricos. Na segunda (216-443), há diálogos em trímetros iâmbicos entre Odisseu, Hécuba e Polixena com os três em cena. 216-331 têm formato de agon, mas o tom dos versos declamados por Hécuba e Odisseu não é típico desse formato; em 332-409, Polixena entra na conversa e se despede da mãe em 409-43.

1º Estásimo 444-483. Dois pares estróficos cantados em metro eólico: estrofe 1 (444-454), antístrofe 1 (455-465), estrofe 2 (466-474), antístrofe 2 (475-483).

miniatura
sacrifício de Polixena

2º Episódio 484-628: relativamente curto, contém breve diálogo entre Taltíbio e Hécuba e duas rhḗseis: uma de Taltíbio (518-583), com o relato do sacrifício de Polixena, e uma de Hécuba (585-628).

2º Estásimo 629-657. Apenas um par estrófico, com metro eólico e iâmbico: estrofe (629-637), antístrofe (638-646) e epodo (649-657).

 

Manuscritos, edições, traduções

O texto pode ser encontrado nos mmss. com as tragédias da “seleção” e no Laurentianus gr. 32.2 (Biblioteca Laurenciana de Florença, 1300-1320), o principal ms. das “peças alfabéticas” de Eurípides.

Da “seleção”, os mmss. completos mais importantes são o Marcianus gr. 471 (Biblioteca de São Marcos em Veneza, século XI) e o Parisinus gr. 2713 (Biblioteca Nacional, Paris, século XI). Hécuba é uma das tragédias da “tríade bizantina”[2] e está presente em mais de 300 outros manuscritos.

A editio princeps é a Aldina, publicada em 1503. As principais edições modernas isoladas do texto grego são as de

  • Antonio Garzya (Roma, 1955);
  • Stephen Daitz (Leipzig, 1973);
  • Cristopher Collard (Warminster, 1991);
  • Justina Gregory (Atlanta, 1999);
  • Kjeld Matthiessen (Berlim, 2010);
  • Luigi Battezzato (Milão, 2010; Cambridge, 2018).

A primeira tradução para o latim foi efetuada por Erasmo de Rotterdam em 1506 (republicada em 1507), antes da tradução de Collinus de todas as peças. A primeira tradução isolada para o português é a de Junito Brandão (Rio de Janeiro, 1951).

Ver também as traduções gerais de Eurípides

Outras traduções: Jaime Bruna (S. Paulo, 1957, não publicada), Mário G. Kury (Rio de Janeiro, 1992), Christian Werner (S. Paulo, 2004), Andreza Moreira (Belo Horizonte, 2015) e Tereza Virgínia R. Barbosa (Belo Horizonte, 2022).

Recepção

Polixena, tragédia perdida de Sófocles que tratatava do sacrifício da jovem, provavelmente foi representada antes da versão de Eurípides[99]. Desde o princípio, Hécuba foi uma das tragédias euripidianas mais populares na Antiguidade e no Período Bizantino.

Na arte antiga, notam-se ecos dela em um lutróforo do Pintor de Dario (Puglia, -340/-320, supra) e nos relevos de um sarcófago etrusco (Orvieto, c. -300).

Há evidências de sua influência em Aristófanes, Demóstenes e Aristóteles; Ovídio seguiu Eurípides bem de perto nas Metamorfoses[3]. Durante o Período greco-romano, Ênio e Ácio criaram duas Hécubas latinas, das quais restam apenas fragmentos; Pacúvio inspirou-se na versão euripidiana do mito em sua Iliona, também fragmentária; e, no século V, Estobeu compilou vários trechos da tragédia com valor gnômico.

miniatura Crespi: Hécuba cega Polimestor

Numerosas obras posteriores a 1500 dramatizaram o mito e seus personagens, mas sem evidências diretas da presença de Eurípides. Em 1603, Shakespeare mencionou Hécuba no Hamlet (ii.2.491-512; 537-54), mas pode ter sido apenas influência do mito, notadamente da versão de Ovídio. Na ópera Ecuba (Turim, 1769), Ignazio Celoniati e Jacopo Durandi seguiram Eurípides pelo menos em parte, mas na maioria das produções os libretos desviavam muito de sua versão, e.g. Achille et Polyxène de Pascal Colasse e Jean Campistron (Paris, 1687), Polyxène de Antoine Dauvergne e Nicolas-René Joliveau (Paris, 1763) e Hécube de Georges Granges de Fontenelle (Paris, 1800). Notável também o espetáculo de dança Cortege of Eagles de Martha Graham (New York, 1967).

Na arte medieval e renascentista, as representações mais frequentes referem-se à tristeza de Hécuba, ao sacrifício de Polixena e à descoberta do corpo de Polidoro. Destacam-se pinturas de Jacob Willemsz de Wet (c. 1610), Pietro da Cortona (Roma, c. 1624), Leonaert Bramer (Prado, c. 1630), Charles Le Brun (New York, 1647), Giuseppe Maria Crespi (Bruxelas, c. 1700, infra), Merry-Joseph Blondel (França, 1814, supra); uma estatueta de bronze Giuseppe Piamontini (Chicago, c. 1725) e uma escultura de Pio Fedi (Florença, c. 1866); e uma gravura de Pierre Peyron ([Ilum. 1130], c. 1784).

Além do testemunho de Demóstenes, há evidências de reapresentações da peça durante o século -IV[4]. Entre 1506 e 1514, a tragédia voltou aos palcos sob a direção de Philipp Melanchthon em Lovaina, Bélgica, no Collège du Porc. Produções notáveis: Théâtre de la Nation (Paris, 1793); Teatro greco di Siracusa (Vincenzo Bonaiuto, 1939); Panathinaïko Stadio (Atenas, Fotos Politis, 1927); antigo Teatro de Epidauro (Alexis Minotis, 1955); Wellesley College, em grego (Marina Ponghis, 1972); Albery Theatre (Laurence Boswell, Londres, 2005); festival de Avignon (Tiago Rodrigues, 2024).

No Brasil, a tragédia foi apresentada em novembro de 2011 em S. Paulo, sob a direção de Gabriel Villela.