Sófocles / As traquinianas

Τραχίνιαι Trachiniae S. Tr. ou Soph. Trach. -457 / -430
Traquinianas é uma tragédia sutil e altamente sofisticada a respeito de emoções primitivas.
Pat E. Easterling

Tragédia de Sófocles inspirada no mito da morte de Héracles, considerada a mais pessimista de suas tragédias conhecidas.

Traquinianas, ou Traquínias (gr. Τραχίνιαι), contém 1278 versos. Não sabemos nem data da primeira representação, nem o concurso em que foi encenada e nem os outros dramas que a acompanharam.

Segundo Easterling (1982, p. 23), qualquer data entre -457 e -430 é plausível e só se pode afirmar que, juntamente com Ájax e Antígona, Traquinianas faz parte do grupo das mais antigas tragédias sofoclianas que sobreviveram.

Hipótese

Após longa e incomum ausência de Héracles, Dejanira descobre que o marido venceu o rei da Ecália e retorna para Tráquis com várias cativas, dentre elas a jovem Iole, por quem se apaixonara. Enciumada, envia a Héracles uma túnica embebida no sangue do centauro Nesso, acreditando que se tratava de poção mágica capaz de reacender o amor do marido. Sem desconfiar, Héracles coloca veste envenenada e, acometido por terríveis sofrimentos, é carregado para casa. Dejanira se mata e Héracles pede que Hilo lhe prepare uma pira no monte Eta, recomendando que o filho se case com Iole após sua morte. Relutante, Hilo jura obedecê-lo.

Personagens do drama

  • Dejanira
  • Ama
  • Hilo
  • Coro de mulheres de Tráquis
  • Mensageiro
  • Licas
  • Héracles
  • Ancião

Personagens mudos: Iole e outras cativas da Ecália, servos de Héracles, companheiros de Hilo.

Mise en Scène

A cena se passa em Tráquis, Fócida, perto das Termópilas, diante da casa de Héracles; o cenário mostra a entrada, emoldurada possivelmente por um pórtico simples.

Acredita-se que o protagonista representou Dejanira e Héracles; o deuteragonista, Hilo e Licas; o tritagonista, a Ama, o Mensageiro e o Ancião.

Resumo da tragédia

Os versos ocupam 44 páginas da edição de Easterling (1982), que serviu de base para o presente resumo.

miniaturaHéracles, Nesso e Dejanira

A tragédia pode ser dividida em duas partes[1]: a primeira (1-970) é protagonizada por Dejanira e a segunda (971-1278), por Héracles. Os dois nunca se encontram no palco.

Prólogo (1-93). Dejanira conta como Héracles a salvou de Aqueloo, se queixa das frequentes ausências do herói, particularmente da atual, muito prolongada (1-49); a Ama sugere que encarregue Hilo de localizar o pai (50-63). O rapaz conta à mãe ter ouvido a respeito de Ônfale e da luta contra Êurito, na Eubeia, antes de iniciar a busca.

Párodo (94-140). O Coro entra, mostra simpatia pela preocupação de Dejanira, lembra que Héracles sempre vence, mas destaca que Zeus concede ciclicamente alegrias e tristezas para todos.

1º episódio (141-496). Dejanira agradece ao Coro e revela que Héracles deixou testamento escrito, a ser cumprido caso não retornasse em 15 meses, fato inédito; se voltasse, viveria sossegado (141-77). Chega um idoso Mensageiro com notícias do herói: ouviu de Licas que ele está vivo, venceu e está retornando (180-204); o Coro comemora (205-224). Licas, à frente de um grupo de mulheres cativas, informa Dejanira que Héracles está na Eubeia, preparando um sacrifício a Zeus após vencer Êurito, a quem inculpou por sido obrigado a cumprir um ano de cativeiro junto a Ônfale; Dejanira interroga o arauto a respeito de uma das mulheres, de nobre aparência e que se mantém em silêncio, mas ele desconversa e sai (225-334). O Mensageiro retém Dejanira e revela ter ouvido do próprio Licas que foi por causa dessa moça, Iole, que Héracles arrasou a Ecália (335-392). Dejanira interroga Licas; pressionado pelo Mensageiro, ele confirma a história, diz ter recebido ordens de levar a jovem ao palácio e recomenda que a rainha aceite a situação; ela concorda e ambos entram (393-496).

1º estásimo (497-530). O coro relembra a luta de Héracles e Aqueloo pela mão de Dejanira.

miniaturaDejanira envia a túnica envenenada

2º episódio (531-632). Dejanira se dirige ao Coro, relembra quando Héracles a salvou do centauro Nesso e que o monstro aconselhou-a a coletar seu sangue, poderoso filtro amoroso, e que vai usá-lo para não ser preterida pelo marido (531-99). Licas sai, e Dejanira entrega-lhe uma túnica embebida no sangue de Nesso, para o herói usar durante o sacrifício (600-32). 2º estásimo (633-62). O Coro celebra a iminente chegada de Héracles.

3º episódio (663-820). Dejanira dialoga com o Coro e, preocupada, conta que o pedaço de lã usado para untar a túnica praticamente desapareceu quando exposto ao sol e teme ter sido iludida por Nesso (633-733). Hilo volta e acusa a mãe de ter matado Héracles: ao colocar a veste, o herói sentiu dores intensas, matou Licas e, em agonia, pediu ao filho que o levasse dali (734-807). O moço exprobra duramente a mãe, que se afasta, em silêncio, depois de ouvir o relato (808-20).

3º estásimo (821-62). O Coro observa, sombrio, que as atribulações de Héracles efetivamente cessariam quando voltasse, e relembra as ações do herói e de Dejanira que levaram a esse desfecho.

4º episódio (863-946). A ama conta ao Coro que Dejanira se suicidou e descreve detalhadamente sua morte. 4º estásimo (947-70). O Coro pranteia Dejanira e Héracles, enquanto o herói imóvel é trazido (em uma liteira?) por silencioso cortejo.

miniaturaHéracles na pira

Êxodo (971-1278). Héracles acorda, atormentado e torturado pela dor. O Ancião chama Hilo, que ampara o pai e lhe conta, ao ouvir sua intenção de matar Dejanira pessoalmente, que ela se suicidou ao descobrir que foi enganada por Nesso (971-1142). Héracles revela que isso havia sido predito por Zeus e pede ao filho que o leve ao Monte Eta e lá prepare uma pira, na qual deverá ser colocado, e que despose Iole. Hilo concorda, a contragosto, e os membros do cortejo erguem Héracles (1143-274). O Coro se retira, afirmando que tudo é desígnio de Zeus (1275-78).

Alguns temas

O texto propriamente dito é coalhado de ditados e provérbios (Silva, 2016) e as estruturas paratáticas (justapostas) são frequentes. A importância da escrita recebe algum destaque (157-8, 682-3, 1165-8).

Observar, pelo menos:

  1. o retorno do herói longamente ausente;
  2. o engano: Nesso contra Dejanira, Licas contra Dejanira, Dejanira contra Héracles;
  3. o autoengano: Dejanira;
  4. a força do amor carnal: Dejanira e Héracles, Héracles e Dejanira, Héracles e Iole;
  5. a força da vingança: Nesso se vinga após a morte;
  6. as incertezas da vida e a alternância entre alegrias e sofrimentos;
  7. o contraste entre a pacata vida familiar (Dejanira) e a vida de aventuras (Héracles);
  8. a ruína da família: marido ausente, esposa negligenciada, amante;
  9. o amor filial e seus penosos deveres: Hilo e Dejanira, Hilo e Héracles;
  10. a infalibilidade dos oráculos.

Texto, edições, traduções

Há dois antigos papiros com fragmentos da tragédia (P. Oxy. 1805 e 3688), datados respectivamento do final do século II e do final do século V. Os manuscritos mais importantes para o estabelecimento do texto são o Laurentianus 32.9 (“Mediceus”, sæc. X), da Biblioteca Laurenciana de Florença, e o Parisinus gr. 2712 (c. 1300), da Biblioteca Nacional da França, Paris.

Editio princeps: a Aldina, 1502. As principais edições modernas isoladas da tragédia são as de Kamenbeek (1946), Schiassi (1953), Dawe (1979), Easterling (1982) e Davies (1991). Primeira tradução para língua moderna: a de George Adams (1729, inglês), seguida de perto pela de Pierre Brumoy (1730, francês).

Traduções para o português: Maria do Céu Zambujo Fialho (1989), Flávio Ribeiro de Oliveira (2009), esta acompanhada de utilíssimas notas filológicas, e Trajano Vieira (2014).

Recepção

Na época da Comédia Intermediária, Érifo parodiou o início de Traquinianas na comédia Éolo (F 1). Ovídio se inspirou na tragédia em um de seus poemas elegíacos (Heroídes 9, c. -25/-15), assim como Sêneca (ou um imitador), na tragédia Hércules no Monte Eta (sæc. I). Muitas obras posteriores, quase todas com títulos baseados no nome dos personagens (“Dejanira”, “Hércules”) também se inspiraram na tragédia, usualmente com adendos baseados em Ovídio e Sêneca. O Pseudo-Apolodoro (Biblioteca 2.7.7, sæc. I/II) parece ter também recorrido a Traquínias para o relato da morte de Héracles.

Numerosos espetáculos musicais (danças, óperas, etc.) remotamente inspirados na tragédia foram representados na Europa em várias ocasiões ao longo dos séculos XVII e XVIII, bem antes das representações teatrais. Dentre eles, cito Ercole Amanti (música de Francesco Cavalli, libretto de Francesco Buti), de 1662, e Hercules (música de Händel, libreto de Thomas Broughton), de 1745. Mais recentemente, destaco Déjanire (música de Saint-Saëns, libreto de Louis Gallet), de 1911.

A primeira representação teatral moderna de Traquinianas se deu em 1776 (Stanmore School, Londres), pelos alunos de Samuel Parr (1747-1825). A primeira produção profissional ocorreu somente em 1877 (Edimburgh, Escócia), sob a direção de Fleeming Jenkin (1833-1885). Em Portugal, a tragédia foi representada em 2003, com encenação de Delfim F. Leão e direção de Victor Torres. Ezra Pound criou notável e criativa versão modernista do texto de Sófocles, em versos (1957).

Na arte, temos apenas representações do mito que inspirou a tragédia, tanto na Antiguidade quanto em nossos dias.