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Eurípides / Alceste

Ἄλκηστις Alcestis E. Alc. -438

Alceste (Ἄλκηστις) é a mais antiga tragédia de Eurípides que sobreviveu e, também, a única anterior à Guerra do Peloponeso. O drama tem 1163 versos.

Sumário

Trata-se, indubitavelmente, da obra de poeta experiente e maduro: Eurípides tinha cerca de 42 anos na época de sua criação. A distância entre Alceste e Pelíades, sua primeira tragédia (-455), é de quase 20 anos.

A primeira performance da Alceste se deu no concurso trágico das Dionísias Urbanas de -438, em Atenas, juntamente com Cretenses, Alcmeon em Psófis e Télefo. Alceste era a quarta peça da tetralogia, lugar habitualmente reservado a dramas satíricos. Eurípides foi classificado em segundo lugar e a vitória coube a Sófocles, mas ignoramos o título dos dramas apresentados por ele. Das outras tragédias de Eurípides restam apenas fragmentos.

Até hoje há uma certa controvérsia quanto à exata natureza da peça. Segundo alguns críticos, a posição na tetralogia, o “final feliz” e o tom humorístico de algumas passagens a tornam mais condizente com um drama satírico ou uma tragicomédia do que com uma tragédia; ela seria um drama “pró-satírico”[1]. A maioria, no entanto, vê Alceste como uma verdadeira tragédia, pois esses elementos aparentemente não trágicos estão igualmente presentes em várias tragédias de Eurípides e, em menor grau, nas de Ésquilo e de Sófocles.

Desde Eurípides, Alceste é tida como modelo de fidelidade conjugal e de esposa inteiramente devotada ao marido[2]. Temas principais da tragédia: casamento, amor conjugal e vida doméstica; hospitalidade, amizade e reciprocidade; vida, morte, luto e lamentos; relações entre marido e mulher, pais e filhos, deuses antigos e novos, deuses e mortais; egoísmo e desprendimento, ganhos e perdas, fama e infâmia.

Personagens do drama

miniaturaHermes, Héracles e Alceste (?)

Apolo e Tânato são divindades; Admeto é o rei de Feras e Alceste, sua esposa; Feres, o antigo rei, é pai de Admeto; o menino é um dos dois filhos de Admeto, que estudiosos antigos identificam com Eumelo, que combateu na guerra de Troia. O coro é constituído por cidadãos proeminentes de Feras, provavelmente em número de quinze, formando dois semicoros[3].

Argumento

O enredo se baseia em antigas tradições folclóricas[4] e no mito de Alceste, conhecido já pelo poeta da Ilíada e por Hesíodo. Castellani imagina a tragédia em “dois atos” e Slater vê a estrutura da peça como um díptico[5]: a primeira parte, trágica, termina com a morte e o sepultamento da heroína (1-746); a segunda, cômica, satírica ou as duas coisas, termina com o novo “casamento” de Admeto e Alceste (747-1163).

Apolo, agradecido pela bondade de Admeto, enganou as Moiras e conseguiu que o rei evitasse sua morte iminente se alguém concordasse em substituí-lo. Apenas Alceste, sua rainha, se ofereceu para morrer em seu lugar e o deus Tânato se apresenta para coletar o que lhe é devido. Apolo pede que Tânato poupe Alceste, em vão.

Uma serva descreve o leito de morte da rainha, particularmente o sofrimento de Admeto e dos filhos. Já perto do fim, Alceste delira e pede a Admeto que nunca mais se case. Ele promete e acrescenta que não mais permitirá comemorações e alegria em seu palácio. Alceste morre: é o único exemplo conhecido, em toda a tragédia grega, de morte representada no palco.

Pouco depois, Héracles chega ao palácio, a caminho de seu 8º trabalho. Amigo de Admeto, pede hospitalidade mas logo percebe que o palácio está enlutado e se despede. Admeto, no entanto, convence o herói a ficar, sem lhe revelar a morte da esposa.

Admeto e Feres discutem acremente durante o enterro de Alceste. Enquanto isso, em seus aposentos, o desavisado Héracles logo começa a beber e a festejar ruidosamente, mas um servo, horrorizado, revela o que se passa. Tocado pelo desprendimento do amigo, o herói enfrenta Tânato, vence o deus, recupera Alceste e a coloca, velada, nas mãos do espantado Admeto.

Mise en scène

O cenário representa a entrada do palácio real de Feras, Tessália.

O protagonista provavelmente representou Apolo e Admeto; o deuteragonista, Alceste, Feres e Héracles; o tritagonista, Tânato e os servos. O papel do filho de Admeto e Alceste provavelmente foi representado por um figurante-mirim, enquanto um dos atores cantava, escondido. Também é provável que, no êxodo, um figurante tenha feito o papel de Alceste, que se mantém muda.

Aventou-se também a possibilidade de todos os papéis terem sido apresentados por apenas dois atores[6]. Nesse caso, Apolo, Alceste, Héracles e Feras ficaram com o protagonista e Tânato, Admeto e os servos, com o deuteragonista.

Apolo carrega um arco (35) e, provavelmente, um carcás com setas (39-40); Tânato tem asas de cor negra (843) e anda com uma espada (74, 76). Héracles é imediatamente reconhecido ao entrar em cena (476-8), certamente devido a alguma característica distintiva, talvez a pele do leão de Nemeia[7].

Estrutura dramática

Para o vocabulário utilizado no estudo da estrutura dramática, ver sinopse Estrutura básica das tragédias.

Prólogo 1-76: monólogo de Apolo (1-27), seguido do diálogo entre Apolo e Tânato (28-76).

Párodo 77-135. A entrada anapéstica “de marcha” ou recitativa (77-85) é seguida de dois pares estróficos (canto e dança): estrofe 1, 86-97; antístrofe 1, 98-111; estrofe 2, 112-20; antístrofe 2, 121-35.

1º Episódio 136-212: diálogo entre o Coro e uma serva de Alceste (136-151), com alguma esticomitia; longa rhḗsis da serva, verdadeiro encômio a Alceste (152-98); breve comentário do coro (199-200); e outra rhḗsis da serva (201-12), mais curta do que a primeira.

1º Estásimo 213-37, canto e dança coral com um único par estrófico: estrofe, 213-25 e antístrofe, 226-37.

2º Episódio 238-434. Breve canto coral de anapestos recitativos introduz o episódio (238-43). Segue-se um dueto estrófico entre Alceste e Admeto: estrofe 1, 244-6; antístrofe 1, 247-51; estrofe 2, 252-9; antístrofe 2, 259-65; epodo, 266-79. Logo depois temos duas longas rhḗseis, uma de Alceste (280-325) e outra de Admeto (328-68), mais um diálogo predominantemente esticomítico entre ambos (371-91), pontuados por comentários do coro (326-7, 369-70). Após a morte de Alceste, anunciada pelo corifeu (392), o pequeno “Eumelo” canta uma monodia com estrofe, 393-403 e antístrofe, 407-15, separadas por breve intervenção de Admeto (404-5). Um diálogo entre o coro e Admeto (416-34) encerra o episódio.

miniaturaA morte de Alceste

2º Estásimo 435-75, constituído por dois pares estróficos: estrofe 1, 435-44; antístrofe 1, 445-54; estrofe 2, 455-66; antístrofe 2, 467-75.

3º Episódio 476-567, com diálogos predominantemente esticomíticos entre Héracles e o corifeu (476-508) e entre Héracles e Admeto (509-50), seguidos por um diálogo comum entre o corifeu e Admeto (551-67).

3º Estásimo 568-605, com dois pares estróficos: estrofe 1, 568-77; antístrofe 1, 578-87; estrofe 2, 588-96; antístrofe 2, 597-605.

4º Episódio 606-961, muito longo e complexo; Conacher (1988, 181) divide-o em duas partes. Na primeira parte (606-746), após rápido diálogo entre Admeto e o corifeu (606-13) e uma calma rhḗsis de Feres (614-28), ocorre o agon formal entre Admeto e Feres, diante do corpo de Alceste. Rhḗseis, Admeto 629-72 e Feres 675-705; diálogo esticomítico, 708-29; declarações finais, Feres 730-3 e Admeto 734-40. Essa parte termina com breve canto coral anapéstico, 741-6 e logo depois Admeto e coro saem, deixando a orquestra vazia durante alguns instantes.

Na segunda parte (747-961) há inicialmente um monólogo do servo de Admeto (747-72), seguido de uma rhḗsis de Héracles (773-802) e do diálogo entre os dois (803-36), breve esticomitia incluída (808-25). Héracles sai depois de um monólogo (837-860) e o episódio termina com o kommós de Admeto e do coro (861-1005): monodia de Admeto (861-71); estrofe 1, 872-88; antístrofe, 889-902; estrofe 2, 903-25; antístrofe 2, 926-34; rhḗsis de Admeto (935-61).

4º Estásimo 962-1005: estrofe 1, 962-72; antístrofe 1, 973-83; estrofe 2, 984-94; antístrofe 2, 995-1005.

Êxodo 1006-1163: o coro anuncia Héracles (1006-7), que dialoga com Admeto normalmente (1008-76), depois através da esticomitia (1077-143) e, mais uma vez, em tom normal (1144-58). Curto canto coral anapéstico (1159-63) precede a saída do coro.

Manuscritos, edições e traduções

A tragédia foi conservada por manuscritos da primeira família, a das “peças selecionadas”. As fontes mais importantes são: Parisinus 2713 (sæc. XI), da Biblioteca Nacional de Paris; Laurentianus 31.10 (c. 1175), da Biblioteca Laurenciana de Florença; e Vaticanus 909 (c. 1250-80), da Biblioteca Apostólica Vaticana. Alguns papiros contêm trechos da Alceste: P.Hibeh 25, 1159–63 (-280/–240); P.Oxy. 4546, 344–82 (sæc. -I/I); P.Oxy. 4547, 772–3 e 774–9 (sæc. II/III).

O texto de alguns manuscritos é precedido de duas hypótheseis, uma dela atribuída a Aristófanes de Bizâncio e a outra, a Dicearco. A hypóthesis de [Aristófanes de Bizâncio], da qual o P.Oxy 2457 (início do sæc. II) tem alguns fragmentos, traz preciosas informações sobre o concurso.

A editio princeps é a de Janus Lascaris[8]. Principais edições modernas (todas, menos a de Garzya, são edições comentadas):

  • Amy M. Dale (Oxford, 1954);
  • Antonio Garzya (Teubner, 21983);
  • Desmond J. Conacher (Aris & Phillips, 1988);
  • Cecelia E. Luschnig & Hanna M. Roisman (U of Oklahoma, 2003);
  • Laetitia P.E. Parker (Oxford, 2007);
  • Gustav A. Seek (De Gruyter, 2008).

Passagens selecionadas

Em 1556, George Buchanan traduziu a tragédia para o latim[9]. A mais antiga tradução para o português é a de João Cardoso de Meneses e Sousa, o Barão de Paranapiacaba[10]. Seguiram-na as de

  • Frederico J. Peirone (Imprensa Nacional, 1961);
  • Junito de S. Brandão (Bruno Buccini, 1968);
  • Manuel O. Pulquério & Maria Alice N. Malça (Verbo, 1973);
  • Mário G. Kury (Zahar, 1993);
  • Nuno S. Rodrigues (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009);
  • Jaa Torrano (Iluminuras, 2015; Codex 6.2, 196-232, 2018; Ed. 34, 2022);
  • Clara Crepaldi (Martin Claret, 2017).

Recepção

A versão euripidiana do mito de Alceste deve ter sido influenciada pela Alceste de Frínico, poeta trágico ativo entre -511 e -476, aproximadamente, mas foi a popularidade da tragédia de Eurípides que manteve o mito vivo nos séculos seguintes. Nem sempre é possível, porém, distinguir entre a recepção do mito e a recepção da tragédia.

Não há evidências diretas das reapresentações da Alceste na Antiguidade, exceto talvez o texto do P.Oxy. 4546, aparentemente destinado aos ensaios do ator que iria representar Admeto[11], e uma discutível menção de Juvenal (6.652-3). Há ecos da Alceste nas comédias de Aristófanes (Acarnenses, 893-4; Cavaleiros, 1251-2; Nuvens, 1415; Aves, 1244; Lisístrata, 605-7; Tesmoforiantes, 194) e Antífanes apresentou, no século -IV, uma comédia com o mesmo título.

Em Roma, o poeta dramático Ácio (-170/-86) compôs uma tragédia intitulada Alceste. O poeta lírico Lévio (séc. -I) compôs um poema com esse título, mas restam fragmentos insuficientes para uma boa avaliação; Plutarco (AD 50-120) citou os versos 780-5 na Consolação a Apolônio; em 176-177, o apologista cristão Atenágoras citou os vv. 1-2 e 8-9 no Apelo em favor dos cristãos; Alcestis Barcinonensis (sæc. IV), poema latino hexamétrico, tem elementos da versão euripidiana do mito; e Macróbio (fl. AD 400) citou os vv. 73-6 em Saturnálias 5.19.4. Em nossos dias, John Milton (1608/1674) mencionou Alceste no Soneto 23 e Robert Browning descreveu e comentou a tragédia no poema A aventura de Balaustion (1871).

Na era moderna, a tragédia foi apresentada pela primeira vez no Collège de Guyenne (Bordeaux, França), entre 1542 e 1543, em latim. Algumas outras reapresentações notáveis: Bradfield College, Inglaterra (1882, direção de Frank R. Benson), em grego antigo; Coburn Players em Nova York (1910, direção de Blanche S. Wagstaff); Teatro de Pompeia (1927, direção de Ettore Romagnoli); Teatro grego-romano de Taormina (1956, direção de Guido Salvini); Cubiculo Theatre, Nova York (1973, direção de Maurice Edwards); antigo teatro de Siracusa, produção do Istituto Nazionale del Dramma Antico (2016, direção de Cesare Lievi).

miniaturaHéracles, Tânato e Alceste

Diversas adaptações teatrais e operísticas da Alceste, inspiradas em Eurípides, mas com expressivos desvios do tratamento do mito, apareceram também nos últimos séculos. As mais importantes são: Alceste, ou A Fidelidade (Alexandre Hardy, tragicomédia, 1602); Admeto, rei da Tessália (George F. Händel e Nicola F. Haym, ópera, 1660); Alceste, ou O triunfo de Hércules (Jean-Baptiste Lully e Philippe Quinault, ópera, 1674); Edward e Leonora (James Thompson, teatro, 1739); Alceste (Christoph W. Gluck e Ranieri de' Calzabigi, ópera, 1767); A segunda Alceste (Vittorio Alfieri, ópera, 1799); Alceste burlesca (Issachar Styrke, burlesco, 1816); Alceste, ou A Mulher Determinada Original (Francis Talfourd, burlesco, 1850); A festa (Thomas S. Eliot, teatro, 1949); Alcestíada (Thornton Wilder, teatro, 1955); Edufa (Efua Sutherland, teatro, 1962); Alceste (Ted Hugues, teatro, 1999).

A influência da Alceste na arte antiga e moderna é particularmente difícil de distinguir de meras ilustrações do mito, como a presença de Alceste na cena de um epinetron do Pintor de Erétria (Atenas, -425/-400), um relevo do templo de Ártemis em Éfeso [Ilum. 1076] e pinturas das catacumbas de Roma, datadas do século IV, e.g. [Ilum. 0853]. Os relevos do sarcófago de C. Junius Euhodus e Metilia Acte (AD 161/170), por outro lado, parecem ter alguns elementos euripidianos na sua composição [Ilum. 0917].

Do Renascimento em diante, vários artistas representaram Héracles salvando Alceste e/ou entregando-a a Admeto, e.g. pinturas de Louis Galloche (1711), Charles A. Coypel (1750), Pierre Peyron (1785, ver [Ilum. 1480]), Eugène Delacroix (1862), Frederick L. Leighton (1869-71), e desenhos de Antoine Colype (c. 1700), Herbert T. Dicksee (1884, ver [Ilum. 1478]) e George Jones (sæc. XIX).

Bibliografia

Hayley 1898; Dale 1954; Conacher 21993; Luschnig & Roisman 2003; Parker 2007; Slater 2013; Roisman 2015; Iakov 2020.