O mito de Eros, o amor, e Psiquê, a alma, vem de antigo “conto de fadas” narrado em latim por Apuleio, com base em mitos mais antigos.
Sumário
Psiquê antes de Apuleio
Nos poemas homéricos, a palavra ψυχή, ‘princípio vital’, é frequentemente utilizada para descrever o que resta dos mortos ou o que abandona o corpo após a morte (e.g. Ilíada 5.294-6, 23.65-74 e 99-107; Odisseia 11.385-9 e 24.1-22).
Na época de Píndaro (F 133) e de Heródoto (2.123), o termo “psique” passou a se referir à alma propriamente dita. Posteriormente, Platão (e.g. Crátilo 399d-400b, Fedro 245c-246a) deu início à concepção atual de imortalidade da alma, repetida e desenvolvida por outros filósofos.
Não sabemos quando Psiquê (gr. Ψυχή) se tornou alegoria ou personificação da alma. A julgar, no entanto, por obras de arte e alguns epigramas (e.g. Meleagro, Antologia Palatina 12.132) que chegaram até nós, é provável que o íntimo relacionamento de Eros (ou Cupido), o amor, com Psiquê, a alma, remonte ao início do Período Helenístico (Gutzwiller 2015, p. 246-7).
Na época da publicação do Asno de Ouro, de Apuleio (c. 160-170), o mito estava certamente bem desenvolvido e tinha talvez alguma relação com rituais; é possível também que Apuleio tenha adaptado um tema folclórico, presente em outras culturas antigas (ver Gollnick 1992, p. 8-11). Não há, porém, outras fontes escritas para compararmos; só dispomos das obras de arte helenísticas e romanas anteriores ao texto de Apuleio.
Psiquê era em geral representada com asas de borboleta, sozinha ou beijando Eros, este um belo jovem com asas de pássaro, às vezes um tanto rechonchudo. A associação entre a alma, Psiquê e as borboletas é provavelmente tão antiga quanto seu mito.
Arte. Psiquê: Louvre MA 2866 e Bj 1950; Berlin TC 8631. Eros e Psiquê: Nápoles 9195;
Londres 1917,0501.1461; Munique DV 72a; Berlim SK 151; Kiev AZS 2856 e 2857.
Eros e Psiquê, de Apuleio
Apuleio iniciou a história (Asno de Ouro 4.28) através de formato que se tornou tradicional:
Erant in quadam ciuitate rex et regina. Hi tres numero filias forma conspicuas habuere, (...)
Havia em certa cidade um rei e uma rainha; eles tinham três filhas de notável beleza. (...)
A mais jovem, Psiquê, era tão formosa que o povo da cidade e até os
estrangeiros a adoravam mais do que a própria Afrodite; adoravam-na,
mas ninguém se atrevia a pedí-la em casamento.
A deusa Afrodite (lat. Vênus), ao ver seus templos e santuários se esvaziarem, decidiu
vingar-se e encarregou seu filho Eros (gr. Ἔρως) de fazer Psiquê se apaixonar “pelo mais abjeto dos
homens”. O rei, pouco depois, foi informado pelo oráculo de Apolo que a filha estava destinada a
desposar um “monstro cruel como uma serpente, que voa pelos ares e não poupa ninguém” e que
tinha de abandoná-la no alto de um rochedo.
O leito nupcial de Eros e Psiquê
Entristecido, o rei obedeceu ao comando divino; ninguém viu Zéfiro, o suave vento oeste,
levar a jovem até um suntuoso palácio de ouro, marfim e pedras preciosas onde serviçais
invisíveis atendiam seus menores desejos. À noite, em meio à total escuridão que não permitia
enxergar nada, foi consumado o casamento de Psiquê com o impiedoso monstro da profecia — o
próprio Eros, que se apaixonara por ela...
Embora nunca visse o marido e nem mesmo soubesse seu nome, Psiquê viveu feliz por muito
tempo. Acabou, porém, sentindo saudades da família; implorou ao marido permissão para
revê-la e o deus consentiu, a contragosto. Avisou-a, porém, várias
vezes, para jamais revelar nada a ninguém e que nunca tentasse ver-lhe o rosto, sob
pena de perder o marido para sempre.
Enciumadas pela evidente felicidade de Psiquê e impressionadas pelos ricos presentes que
ela lhes trouxera, as duas irmãs mais velhas convenceram-na a contar tudo e
incutiram-lhe a ideia de que somente um monstro horrendo evitaria mostrar o rosto à
própria esposa.
À noite, já de volta, Psiquê esperou o marido adormecer e acendeu um candeeiro;
sua mão, porém, tremeu ao reconhecer o deus e uma gota de óleo fervente caiu sobre ele,
acordando-o. Ao se ver descoberto, Eros levantou vôo e disse à esposa que ela nunca
mais o veria.
Fora de si, Psiquê primeiro tentou se afogar, mas o rio jogou-a de volta à
margem. Pã aconselhou-a a reconquistar Eros e ela, desesperada, começou a andar de cidade em cidade, à procura do marido. No caminho, vingou-se das duas
irmãs, provocando sua morte.
Tentou encontrar ajuda nos templos de Deméter e de Hera, sem sucesso, mas conseguiu encontrar o palácio de Vênus (Afrodite). A deusa, ainda enciumada e enraivecida — havia sido enganada pelo próprio filho —, humilhou-a e tratou-a pior do que a última de suas escravas. E
encarregou-a de quatro tarefas aparentemente impossíveis; na última ela teria que entrar no hades, o reino dos mortos.
Júpiter (Zeus) aprova o casamento de Eros
Apesar das dificuldades, Psiquê saiu-se bem, pois as próprias forças da natureza (e Eros) a ajudaram a cumprir as perigosas tarefas.
Eros, enquanto isso, conseguira obter o inestimável auxílio de Zeus... e o pai dos deuses resolveu a questão com divina simplicidade.
Transformou Psiquê em deusa[1] e avisou a todos que aprovava o casamento dela com Eros.
Assim, finalmente tudo se resolveu: os dois amantes ficaram unidos por toda a eternidade e
Afrodite, apaziguada, voltou a receber as devidas homenagens.
Apuleio, Asno de Ouro livros IV-VI passim.
Recepção
A popularidade do mito após Apuleio é visível principalmente nas obras de arte dos séculos II-IV. Estátuas, estatuetas, relevos e mosaicos representam o casal em atitutes ternas e apaixonadas, usualmente com asas.
Na Antiguidade tardia, Apuleio era bem conhecido tanto por escritores pagãos como Macróbio (370/430), quanto por escritores cristãos como Santo Agostinho (354/430), Martianus Capella (fl. c. 410/420) e Fulgêncio (c. 550). Capella reescreveu o mito de Eros e Psiquê no tratado Das Núpcias de Filologia e Mercúrio; Fulgêncio descreveu-o no livro Mitologias e fez detalhada interpretação das alegorias presentes no mito.
Eros e Psiquê, de Canova
O mais antigo manuscrito do Asno de Ouro, o Laurentianus 68.2, foi copiado no século XI em Monte Cassino, Itália. Outras cópias se seguiram, mas a redescoberta de Apuleio e suas histórias, entre elas a de Eros e Psiquê, só ocorreria em meados do século XIV, talvez por iniciativa de Giovanni Boccaccio.
Boccaccio fez nova descrição do mito (Da genealogia dos deuses pagãos 5.22, De Psyche) e “corrigiu” a interpretação de Fulgêncio, equiparando alegoricamente as vicissitudes de Psiquê ao caminho percorrido pela alma humana rumo à felicidade eterna.
O texto de Boccaccio só foi publicado em 1472, pouco depois da editio princeps de Apuleio (Roma, 1469), mas dessa data em diante a história de Eros e Psiquê e a leitura de Boccaccio exerceram enorme influência na literatura e em outras artes.
Na literatura, o mito transparece em algumas obras de William Shakespeare (e.g. Ricardo III, c. 1592; Otelo, c. 1603) e de John Milton (e.g. Comus, 1634). As aventuras de Psiquê foram explicitamente recontadas em poesia e prosa, sob vários aspectos; cito, a título de ilustração: Niccolò da Correggio (1491), Shackerley Marmion (1637), Jean de La Fontaine (1699), William Woodsworth (1801), Mary Tighe (1805), John Keats (1820), Robert Bridges (1885), Ezra Pound (1909), C.S. Lewis (1956), Eudora Welty (1942) e Joyce Carol Oates (1970).
No teatro, destacam-se a mascarada de Thomas Heywood (1634), três autos de Calderón de la Barca (1662-5), uma tragicomédia-balé de Molière, musicada por Jean-Baptiste Lully em 1671, e peças de Mary Zimmerman (1996), Maria Hernandez, Emma Rosecan e Alexis Stickovitch (2012).
A história de Eros e Psiquê tem vários temas em comum com os contos de fadas modernos, notadamente “O cadeado” e “O tronco de ouro” (Basile, 1634-6), “A bela e a fera” (Villeneuve, 1740), “Cinderela” (Perrault, 1697) e “A cotovia que salta e canta” (Grimm, 1815). O conto A leste do Sol e a oeste da Lua (1841) é, praticamente, uma adaptação norueguesa do relato de Apuleio.
O beijo de Eros e Psiquê
As mais notáveis adaptações musicais são, além do balé de Lully, óperas de Ludwig Abeille (Amor e Psiquê, 1800), com libreto de Franz Carl Hiemer, de Ludomir Różycki, com libreto de Jerzy Żuławski (1917), de Meta Overman (1955) e uma ópera-rock de Cindy Shapiro (2014); um poema sinfônico de César Franck (1888); um musical de Sean Hartley e Jihwan Kim (2003); e uma composição musical de Manuel de Falla sobre un poema de Jean-Aubry (1924).
Muitos artistas pintaram, esculpiram ou desenharam conjuntos de episódios do mito, entre eles Raffaello Sanzio (c. 1517), Giulio Romano (1526-8) e Maurice Denis (1908-9). São também notáveis as representações de episódios isolados criadas por Peter Paul Rubens (c. 1636), Anthony van Dick (1639-40), Luca Giordano (1695-7), Jean-Honoré Fragonard (1753), Antonio Canova (1790-1800), Francisco de Goya (1798-1805), Jacques-Louis David (c. 1817), Edward Burne-Jones (várias pinturas, 1865-1895), José Maria Veloso Salgado (1891), Auguste Rodin (várias esculturas, 1885-1907), John Williams Waterhouse (1903), entre muitos outros.
No Brasil, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, em 1945, e Ferreira Gullar, em 2009, traduziram as passagens do Asno de Ouro que contêm o mito de Eros e Psiquê; Ângela Lago contou, em 2010, a história
em imagens; e há várias versões do mito dirigidas ao público infanto-juvenil.
Há diversos estudos que analisam o mito de Eros e Psiquê do ponto de vista psicológico e psicanalítico.
Em homenagem a Psiquê, um dos maiores e mais densos asteroides que orbitam o sistema solar entre Marte e Júpiter recebeu o nome 16 Psyche em 1852.