A passagem selecionada descreve a morte de Heitor, o maior dos heróis troianos.
A tradução é de
Guida Nedda Barata Parreira Horta†, antiga professora titular de Língua e Literatura
Grega da UFRJ (Horta, 1983, p. 109-10). Fiz apenas um leve ajuste na
distribuição de palavras entre os versos.
Assim lançou-se Heitor, brandindo o gládio ponteagudo,
e se atirou também Aquiles, o coração transbordante de rancor
selvagem, pondo à frente do peito o belo escudo
trabalhado, enquanto oscilava, refulgente, o capacete
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de quatro faces, revolto o áureo penacho
que Hefesto dispusera, em quantidade, em torno da cimeira.
Tal como a estrela vespertina avança entre outros astros
no seio profundo da noite, Vésper, a mais bela de quantas há no céu,
assim luzia a acerada lança que Aquiles brandia em sua dextra,
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meditando o mal para o divino Heitor e perquirindo em sua bela
pele o ponto em que mais vulnerável deveria ser.
Ora, todo o seu corpo estava protegido pela armadura, as belas armas de bronze
que, ao vigoroso Pátroclo, Heitor arrebatara ao matá-lo.
Visível apenas era o ponto em que a clavícula separa pescoço e espáduas,
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a garganta, por onde mais depressa se esvai a vida.
Foi lá que, impaciente, o divino Aquiles enterrou a lança
e a ponta atravessou de lado a lado a carne tenra.
Mas o pesado bronze não atingiu a traqueia,
permitindo a Heitor falar e responder alguma coisa.
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E enquanto rola na poeira o contendor, Aquiles, o divino, diz triunfante:
"Heitor, ao despojares Pátroclo crias-te a salvo
e o proclamaste, esquecido de mim, estando eu tão longe.
Pobre tolo! Pois afastado, um vingador muito melhor que tu,
junto às naus bojudas, postava-se atrás; era bem eu
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que agora vergo-te os joelhos e, em breve, os cães e as aves
virão estraçalhar-te, enquanto a ele os Aqueus renderão honras fúnebres."
Desfalecente, Heitor, o de capacete reluzente, retrucou-lhe:
"Eu te suplico, por tua alma, por teus joelhos, por teus pais,
não permitas que, junto às naus bojudas dos Aqueus, me estraçalhem os cães,
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Mas aceita, em abundância, ouro e bronze,
que te ofertarão meu pai e minha venerável mãe;
meu corpo, devolve-o ao lar, para que Troianos
e esposas de Troianos me destinem, estando morto, às chamas da fogueira."
Então Aquiles, o de pés rápidos, olhando-o obliquamente, retrucou:
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"A mim, cachorro, não supliques, nem por meus joelhos, nem por meus pais.
Tanto minha cólera e meu ardor me levariam
a te despedaçar para comer-te cru, tais coisas me fizeste,
quanto é certo que ninguém espantaria os cães de tua cabeça,
ainda que trazendo dez ou vinte vezes
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o valor de teu resgate, ou mesmo prometendo muito mais,
fosse até por insistência de Príamo, o Dardânida, a ofertar
teu peso em ouro; de modo algum tua nobre mãe
te pousará num leito, para chorar a quem gerou,
mas sim os cães e as aves te hão de devorar o corpo inteiro."
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Então, já moribundo, responde Heitor, o de capacete cintilante:
"Ah sim; basta-me ver-te e conhecer-te, e não deveria
tentar persuadir-te, pois há um coração de ferro no teu peito.
Mas tem cuidado agora a fim de que eu não me torne
junto aos deuses motivo de cólera contra ti, no dia em que Páris e Febo-Apolo,
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por mais bravo que sejas, te perderão, junto às Portas-Ceias".
Nem bem falara e o fim mortal já o envolvia:
sua alma evolando-se dos membros partia para o Hades, deplorando-lhe
a sorte, abandonando-lhe a força viril e a juventude.
Já estava morto quando Aquiles, o divino, assim falou:
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"Morre! A mim virá a funesta divindade só quando
assim determinarem Zeus e os outros deuses todos."