Platão / República 614b-615a

Pl. Resp. -387 / -367
tradução / grego antigo

Tradução da parte inicial do Mito de Er, um dos mais conhecidos mitos de Platão, contado por ele no diálogo República.

A tradução, já publicada, é de Rodolfo Pais Nunes Lopes (2018)*. As notas, também de sua autoria, foram reduzidas ao essencial. Os parágrafos foram divididos para facilitar a leitura.

614b. “Olha que o que te vou contar não é uma estória de Alcínoo, mas sim de um homem adamantino[1]: Er, filho de Arménio[2],9 da casta dos Panfílios” – disse eu. “Dez dias depois de ter morrido em combate, quando apanhavam os cadáveres já apodrecidos, foi apanhado ainda em bom estado. Foi levado para casa, quando, ao décimo segundo dia, já deitado na pira e pronto para o funeral, voltou à vida e, ressuscitado, falou do que tinha visto no além.

Disse que a sua alma, quando saiu dele, foi encaminhada [c] com muitas outras e chegaram a um certo local extraordinário, onde havia, uma ao lado da outra, duas aberturas a partir da terra e, no sentido oposto, outras duas lá no alto a partir do céu. Entre as aberturas estavam sentados uns juízes, que, depois de terem proferido a sentença, mandavam seguir os justos, pela direita, o caminho para cima, pelo céu, e os injustos, pela esquerda, o caminho para baixo.

Aos justos anexaram na frente as provas da sentença, e os injustos tinham nas costas as provas de tudo o que praticaram. [d] Quando Er compareceu, disseram que ele devia servir de mensageiro para os homens acerca das coisas do além, e ordenaram-lhe que ouvisse e contemplasse tudo o que há nesse lugar.

Viu de que modo as almas, depois de lhes ter sido dada a sentença, saíam por cada uma das duas aberturas do céu e da terra. Quanto às outras duas, por uma subiam da terra as almas cheias de sede e de poeira, e pela outra desciam do céu as almas purificadas. E as que iam chegando pareciam regressar [e] de uma longa viagem: saíam contentes para os prados e acampavam como num festival.

As que se conheciam cumprimentavam-se umas às outras, as que chegavam da terra pediam informações às outras sobre as coisas do além, e as que chegavam do céu pediam informações sobre as outras almas. Narravam umas às outras as suas experiências: umas, lamentando-se e chorando, recordavam o quanto e como sofreram e

615a. viram durante a viagem por baixo da terra (viagem que dura mil anos); outras, as que vinham do céu, falavam sobre delícias e visões de uma beleza inconcebível.

(*) Licença da tradução e das notas: CC BY 4.0.