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Éris, a discórdia

Em Roma: Discordia
ἥ σφιν καὶ τότε νεῖκος ὁμοίϊον ἔμβαλε μέσσῳ

E foi ela que então lançou, desse modo, a discórdia no meio deles

Éris simboliza não só a discórdia, mas também contendas, disputas e rivalidades. Usualmente a tradução de seu nome é “Discórdia”, mas poderia ser igualmente “Disputa”, “Rixa” ou “Conflito”.

Mitos

Na Ilíada, a deusa Éris (gr. Ἔρις) tanto instiga a discórdia, como “irmã e companheira” de Ares (4.440-5), quanto incita os soldados à luta, com seu grito terrível (11.3-14).

Para Álcman (F 146), Éris é um monstro ctônio (χθόνιον τέρας ), i.e., ligado à terra. Antes dele, Hesíodo (Trabalhos e Dias 11-12) especificou que Ἐρίδων ... εἰσὶ δύω, ‘há duas Érices’, que efetivamente estão ἐπὶ γαῖαν, ‘sobre a terra’. A primeira é uma Éris cruel, associada a guerras e conflitos, e que nenhum mortal aprecia; a segunda, filha de Nix, é uma boa Éris. Ela estimula os homens a trabalhar, aparentemente através da inveja pelo sucesso alheio, e nesse caso representa a rivalidade natural entre seres humanos.

miniaturaO pomo da discórdia

Como personificação da discórdia e do conflito, Éris está presente na égide usada por Atena e em diversas lutas descritas na Ilíada. O episódio mais emblemático de seu mito é o “pomo da discórdia” que desencadeou a divina querela da beleza, intervenção que se tornou causa antecedente da Guerra de Troia.

O poeta Estasino conta que Éris não foi convidada para o banquete de casamento de Peleu e Tétis — ou esqueceram de convidá-la, não sei porquê... Mas ela compareceu assim mesmo e lançou, diante de Hera, Afrodite e Atena, um pomo de ouro com a maliciosa e provocativa inscrição τῇ καλλίστῃ, ‘à mais bela’ (cf. Luciano, Julgamento das deusas). Aí, Zeus achou melhor não se meter nessa história e decidiu envolver um mortal, Páris, que deu o pomo a Afrodite, que fez Helena se apaixonar por ele, etc. etc.

miniaturaO colar de Harmonia

De acordo com Eurípides (Orestes 1001-6), foi Éris quem mudou o curso do sol e das plêiades durante o conflito entre Atreu e Tiestes, os filhos de Pélops. Para Estácio (Tebaida 2.286-8), Éris ajudou a confeccionar o fatídico colar de Harmonia com sua mão direita.

Descendentes de Éris

Boa ou má, Éris parece ter sido a única descendente de Nix a ter, por sua vez, descendência. Éris gerou 15 filhos, personificações e abstrações como ela. Alguns filhos têm nomes plurais e todos surgiram por simples desdobramento:

  • Algias (gr. Ἄλγεα), as dores
  • Androctasias (gr. Ἀνδροκτασίας), os massacres
  • Anfilogias (gr. Ἀμφιλλογίας), as disputas
  • Áte (gr. Ἄτη), a ilusão ou o erro
  • Disnomia (gr. Δυσνομία), a falta de lei
  • Fonos (gr. Φόνοι), os assassinatos
  • Hysminas (gr. Ὑσμίνας), as batalhas
  • Hórkos (gr. Ὅρκος), o juramento
  • Léte (gr. Λήθη), o esquecimento
  • Limo (gr. Λιμός), a fome
  • Lógos (gr. Λόγους), os discursos
  • Máchas (gr. Μάχας), os combates
  • Neíkeas (gr. Νείκεα), os litígios
  • Pono (gr. Πόνος), o trabalho penoso
  • Pseúdeas (gr. Ψεύδεα), as mentiras

Éris não se uniu a ninguém para ter os filhos e fez quase tudo sozinha, mas consta que as Erínias ajudaram no parto de Hórkos. Na mitologia greco-romana, os dois filhos mais importantes são Léte, o esquecimento, e Áte, o erro.

Ilíada 4.440-5; 5.518; 11.3-14; Hesíodo, Teogonia 225-32 e Trabalhos e Dias 11-26 e 802-4; Cantos Cíprios arg. 1; Eurípides, Ifigênia em Áulis 1299-1308; Virgílio, Eneida 8.702; Higino, Fábulas 92; Pseudo-Apolodoro, Epítome 3.2; Luciano, Julgamento das Deusas.

Iconografia e culto

miniaturaBerlim F 1775 / Éris correndo

A rigor, a mais antiga representação de Éris é de autoria divina: Hefesto a colocou no escudo que confeccionou para Aquiles (Ilíada, 535-40). Pseudo-Hesíodo descreveu uma feroz imagem de Éris bem no meio do escudo de Héracles (vv. 144-50), mas a autoria divina da obra é apenas sugerida (112-9).

A segunda imagem mais antiga, já na esfera mortal, qualifica Éris de “muito feia” (αἰσχίστη): é a da arca perdida de Cípselo, cuja descrição conhecemos graças a Pausânias (5.19.2).

Em alguns vasos de figuras negras do Período Arcaico ela foi representada com asas, em plena corrida, sem atributos distintivos. As figuras lembram as mais antigas figurações de Nice, mas em pelo menos uma das cenas (Berlim F 1775) ela está identificada por uma inscrição: ΕΡΙΣ. Em muitas outras, e.g. [Ilum. 0919a], a atribuição é duvidosa.

Há um vaso de figuras vermelhas com inscrições (São Petersburgo ST 1807) que mostra Éris como simples figura feminina. Ela conversa animadamente com a titânide Têmis, com certeza a respeito do julgamento de Páris, representado em uma cena próxima.

Pausânias informa que havia uma estátua dela no santuário de Ártemis em Éfeso. Oficialmente, porém, na Grécia Antiga ninguém cultuava a discórdia.

Recepção

miniaturaÉris e Hermes perseguem Páris

Esopo contou uma fábula sobre Héracles, a discórdia e a contenda (P 316 = CH 129); Ésquilo (Sete contra Tebas 1051) mostrou que, numa discussão, Éris era a última divindade a argumentar; Eurípides contou a história da mudança de curso dos astros (supra); e Íbico (F 311) a mencionou rapidamente.

Virgílio (Eneida 6.268-81), no século -I, situou Discordia especificamente no mundo dos mortos e a descreveu como a uma górgona, com cabelos de cobras vivas, na companhia de outras soturnas abstrações (Velhice, Sono e Morte, Pobreza, etc.). Sêneca (Loucura de Hércules, 92-4), no século seguinte, seguiu a mesma linha.

Estácio (Tebaida 5.66-74, sæc. I) e Antonino Liberal (Metamorfoses 11) associaram a deusa também aos conflitos entre cônjuges.

Vários outros poetas e prosadores mencionam Éris (ou sua contraparte romana) e seus mitos. Os mais notáveis são Valério Flaco (sæc. I), Trifiodoro (sæc. III), Quinto de Esmirna (sæc. IV) e Nono (sæc. V).

Higino (Fábula 92) foi o primeiro a falar na ‘maçã’ (malum) lançada por Éris ou Discordia entre as deusas, e depois dele Luciano e o Pseudo-Apolodoro disseram o mesmo (μῆλον), em grego. Em português, tradicionalmente se fala em “pomo”[1]. No século VI, o poeta Colutos (Rapto de Helena 37-63) descreveu a raiva de Éris e detalhou a entrega do pomo da discórdia.

f0212. Éris (Discórdia) espreita um casal
Fig. 0212. La Fontaine: Discórdia espreita um casal.

Ludovico Ariosto (1474-1533), John Wolcot (1738-1819) e outros poetas e prosadores modernos, assim como vários artistas (Primaticcio, Turner, Rubens, Jordaens), se inspiraram em Éris ou especificamente nesse episódio.

La Fontaine (1668) lhe dedicou uma curiosa fábula, La diſcorde, que destaca a discórdia entre casais e começa assim (6.20.1-3):

La Deeſſe Diſcorde ayant broüillé les Dieux,
Et fait un grand procès là-haut pour une pomme ;
On la fit déloger des Cieux.
Quando a deusa Discórdia perturbou os deuses
E armou enorme confusão lá no alto por causa de uma maçã;
Fizeram-na se mudar dos Céus.

A expressão “pomo da discórdia” se tornou lugar-comum para designação de ideias, argumentos e até objetos e construções que suscitam controvérsias e disputas, como a Illa de la Discordia, de Barcelona.

De acordo com Tatar (2004, p. 103, n. 5), a vingança da bruxa no conto de fadas da Bela Adormecida, pelo menos na versão de Grimm (ATU 410), foi inspirada pela reação de Éris ao não ser convidada para a festa.

Em meados do século XX, Éris se tornou uma espécie de inspiração para uma pseudorreligião ou estilo de vida, o “discordianismo”, cujos preceitos têm tonalidades humorísticas e argumentos relativamente sérios.

O nome do planeta anão Éris ou “(136199) Eris”, o mais distante do sistema solar, foi escolhido em 2006 devido à controvérsia que cercou sua descoberta. E seu único satélite, Disnomia (gr. Δυσνομία) ou “(136199) Eris I Dysnomia”, recebeu o nome de um dos filhos de Éris.